Falha na divulgação do Naturismo
No dia de ontem (15/06/2020), a Pensamentos ao Vento publicou, na rede social facebook, uma imagem com uma citação de Honoré de Balzac que, por algum motivo, não teve a interpretação, por parte de diversas pessoas, que se pretendeu transmitir.
A frase citada era “Uma mulher nua seria menos perigosa do que é uma saia habilmente exibida, que cobre tudo e, ao mesmo tempo, deixa tudo à vista”, aplicada numa imagem de uma mulher de minissaia, que está também a ilustrar este artigo, e que foi complementada pelo texto da publicação: “Um corpo nu é apenas um corpo nu, já um corpo vestido pode ser o que quiseres”.
Como introdução, apresentamos um pouco o autor da citação colocada na imagem.
Na sua escrita, Honoré de Balzac retratava o mundo social da sua época e diz-se que pressentia que o seu propósito não era frequentar a sociedade, mas criá-la. Entre os detalhes mais comuns na escrita de Balzac estão as descrições às vezes minuciosas de decorações, roupas, e posses, que ajudam a conhecer melhor as personagens.
Numa época em que a mulher das classes burguesas era a dona de casa e a mãe, um objeto que os pais e maridos exibiam nas convenções sociais, reprimida na sua sexualidade, onde o casamento era apenas um contrato, normalmente vantajoso, e por isso “arranjado” pelas famílias dos contraentes, muitas das vezes violado pelo vazio da relação entre marido e mulher e os consequentes romances extraconjugais, Honoré de Balzac acaba por dar à mulher uma outra visão do seu ser conferindo-lhe protagonismo numa sociedade masculina com o recurso a um dos poucos argumentos que a mulher poderia usar: o seu corpo e a forma como se vestia e se meneava. Isto, não reduzindo a mulher à sua sexualidade, mas para dar ênfase à frase citada em que se coloca em evidência a sensualidade da mulher como arma, recorrendo à forma de vestir, em contraposição com o corpo despido. Uma época em que a visão de um tornozelo feminino poderia ser algo erótico, uma vez que a roupagem feminina chegava a cobrir os pés.
Ao se adaptar a frase ao Naturismo, não se pretendeu destacar a roupa ou o corpo e muito menos o erotismo, mas sim demonstrar a simplicidade e inocência do corpo. Daí se ter usado o comentário “um corpo nu é apenas um corpo nu” para se demonstrar essa simplicidade, em contraponto com “já um corpo vestido pode ser aquilo que quiseres”. Basta lembrar as fardas usadas por diversos setores de trabalhadores para que imediatamente se possa identificar os serviços que presta, ou mesmo a classe social em que uma pessoa se insere. Isto para não falar de outras máscaras ocultadoras ou vinculadoras de identidade. Ou seja, as máscaras sociais que se podem adquirir em função do vestuário. E o Naturismo pode ser muita coisa, mas não é máscara social.
Admitimos que a imagem utilizada para o efeito possa não ter sido a melhor escolha, mas entendeu-se, nessa publicação dar destaque visual ao uso inapropriado que muita gente faz da roupa, quer ao usá-la para se exibir, quer aos que olham e acham que quem a veste se quer destacar. E a citação na imagem tem o propósito de reforçar essa ideia: A roupa pode evidenciar o que a nudez simplifica. Talvez o ideal tivesse sido optar por um corpo nu na sua simplicidade.
Já o texto de introdução na publicação pretendeu fazer o contrário da imagem, ligando-a ao essencial da mensagem geral. Referir que, no Naturismo, o corpo nu é apenas o corpo nu, apenas a pessoa, bem como salientar o facto de a roupa ter a função de proteção e conforto, em contraponto com outras duas possibilidades, em função da interpretação do emissor e do recetor:
- O uso da roupa propositadamente para destacar a seu utilizador, masculino ou feminino, o que normalmente poderemos designar por exibicionismo;- O uso da roupa por alguém que não pretende destacar-se e o faz por conforto (com o uso de roupa justa, curta ou transparente, e com a qual se sente confortável), mas que a interpretação de quem olha faz dessa indumentária, erradamente, um sinal de disponibilidade sexual transformando a pessoa observada em objeto de desejo. E aqui podemos incluir a nudez, pois esta também não é usada para despertar o desejo, não na visão Naturista do corpo, mas que pode ser interpretada como fomentadora de desejo na visão de alguém vítima de recalcamento.
Sabemos que nas redes sociais, e não só, uma imagem sobressai sempre mais do que o texto que a acompanha e daí ter resultado em interpretações que se centraram na imagem e não na mensagem completa, originando comentários que acabaram por corroborar exatamente a mensagem que pretendíamos fazer passar, mas que, pelos vistos, não chegou da forma que queríamos transmitir.
Um desses comentários, numa segunda abordagem, indicava o direito de qualquer pessoa usar a roupa que bem entendesse, dado que o faria por uma questão de conforto, ao que respondemos, em concordância com o comentário:
Quando se usa roupa por conforto e necessidade nada de errado se passa.Não se pretende criticar o uso de roupa quando necessário; não se pretende criticar o uso de roupa curta, transparente ou o que seja, desde que o propósito seja o conforto, o sentir-se bem com o que se usa.Critica-se no que se tornou o corpo feminino nas mãos do marketing.Critica-se o facto de uma mulher não poder estar nua sem que seja objeto de desejo por parte daqueles que acham que o corpo despido é sinal de disponibilidade.A frase na imagem deve ser lida no contexto da época do seu autor, século XIX. Um contexto, relativamente ao corpo nu, que continua a estar presente para muita gente.A frase na publicação diz que um corpo nu só por si é apenas um corpo. Quando o vestimos pode ser o que nós quisermos. A roupa caracteriza-nos e é no vestir que acabamos por "dizer quem somos".
Num outro comentário, no grupo da Federação Portuguesa de Naturismo, Filipa Gouveia Esteves, atual Presidente do Conselho Executivo da FPN, comentou:
Uma saia curta só mostra aquilo que as cabeças dos outros quiserem ver. Nua ou vestida, com saia curta ou calças, a mulher é a mesma, o seu corpo também os olhares dos outros é que poderão ser diferentes. O perigo será sempre relativo. No contexto Naturista estes olhares não deverão existir.No Naturismo estar nú é um estado natural, o vestir é acessório, mas devido a várias condicionantes acaba por ser também algo comum. A sexualidade, ou a sensualidade não está na nudez ou na roupa, apenas na mente e na forma como se "usa" o corpo, nú ou vestido, seja ele um corpo feminino ou masculino.
Comentário com o qual concordámos pois era essa mesmo a mensagem que pretendíamos transmitir, reforçada com o texto que acompanhava a publicação e que pretendia direcionar para o nosso ponto de vista: O corpo nu é apenas o corpo nu.
Citando João Paulo II, ainda como Bispo da Cracóvia, no seu livro Amor e Responsabilidade, “A nudez mesmo do corpo não equivale, sem mais, ao impudor do corpo. Dá-se o impudor quando a nudez desempenha uma função negativa em relação ao valor da pessoa: despertar a concupiscência [1] da carne e expor a pessoa como objeto de uso. (…) O impudor (assim como o pudor e pudicícia) é uma função do interior da pessoa. Nasce da vontade quando ela assume a reacção da sensualidade e reduz a outra pessoa, considerada apenas pelo ‘corpo e sexo’, ao papel do objecto de uso”. No mesmo trabalho, Karol Wojtyla adota uma frase que acaba por ser semelhante à de Honoré de Balzac quando afirma “Fica claro que o vestido pode servir não só para ocultá-las, como para destacá-las”, quando se refere a ocultar as partes do corpo que determinam a diferença sexual.
Uma outra situação, em mensagem privada, deu-nos conta de que a citação é usada por grupos de cariz sexual, nomeadamente o swing, e que a imagem usada remeteria para essa situação onde o jogo de sedução desempenha um papel importante nessa prática sexual. Algo completamente contrário aos propósitos do Naturismo, pelo que nunca iriamos usar a imagem ou o texto com outra intenção que não fosse a promoção do Naturismo e daí a razão de ter sido usada uma foto sem nudez.
Numa publicação anterior, partilhada no facebook e também publicada neste espaço de textos para elucidar sobre o Naturismo, deixámos um poema cujo primeiro verso diz “Era uma vez uma pessoa gorda e feia”. Caso não tenha ficado explícito, esta expressão é generalista, com recurso a uma figura de estilo, para referir as negatividades que levam uma pessoa a sentir-se mal com o seu próprio ser e não o facto de ter peso a mais ou uma face fora daquilo que a sociedade considera como agradável. Curiosamente, achámos que esta publicação poderia ser mal interpretada, mas, se o foi, ninguém a comentou num sentido discordante.
Estamos em crer que esta Associação e o seu atual Presidente da Direção têm provas mais do que suficientes para que se pudesse sequer questionar a sua posição perante a nudez e o uso do vestuário, pelo menos para aqueles que conhecem quer a instituição, quer a pessoa. E essa foi uma das questões levantadas que alguém nos fez chegar, que esperava tal coisa de muitos lados, menos deste.
Tal como quem olha um corpo vestido (vestido por questões de conforto) pode ver mais do que aquilo que se pretende (relacionar o vestir por conforto com a intenção de exibir), também a interpretação da publicação, esta ou qualquer outra, fica sempre ao critério de quem lê e nem sempre corresponde ao que se pretende transmitir. Seja por dificuldade na transmissão, seja por dificuldade na receção, nem sempre a mensagem chega da mesma forma a todos os recetores, mas esta é uma das características da comunicação. Mais uma vez, admitimos que a escolha da imagem para acompanhar o texto possa ter sido infeliz, mas não no nosso ponto de vista enquanto emissor e pelas razões explanadas ao longo deste texto.
Caso ainda não esteja suficientemente explícito, esclarecemos que não defendemos o exibicionismo, voyeurismo, nem quaisquer outras parafilias. Por aqui, um corpo nu é apenas um corpo nu e consideramos o Naturismo como uma prática social na qual as pessoas estão despidas de roupas e preconceitos impostas pela sociedade em geral, onde se procura o contacto com o que é natural, deixando de lado erotismos, exibicionismos, a visão do corpo sexual, tão explorada pela sociedade, e onde o corpo é apenas o exterior do ser humano [2]. E isto aplica-se também quando a pessoa necessita de se cobrir por questões de conforto e sociais.
Ao Naturismo já bastam, entre muitos outros, os problemas originados pela relação que alguns estabelecem entre as praias onde se pratica a nudez social e locais de engate, e que trazem toda uma carga negativa ao Naturismo, para que se venha questionar o intuito da publicação de uma coletividade que ao longo da sua existência tem demonstrado inequivocamente a sua visão do Naturismo, quer a quem se despe socialmente, quer a quem não pratica a nudez social.
[1] De acordo com o autor do texto transcrito, concupiscência é o desejo de uso concentrado nos valores do sexo e prescindindo do valor essencial da pessoa.
[2] Vieira, José Luís (2016). Naturismo, uma filosofia de vida. Lisboa: Edições Fénix.
Por José Luís Vieira
16-06-2020
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